Caio Simão’s review published on Letterboxd:
Duna: Parte Dois, de 2024. Filme dirigido por Dennis Villeneuve e adaptado da lendária obra literária base do Frank Herbert. O longa é estrelado por Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Zendaya, Josh Brolin, Christopher Walken, Austin Butler, Florence Pugh, Dave Bautista, Léa Seydoux, Stellan Skarsgard, Charlotte Rampling e Javier Bardem. Um elenco vasto e de peso.
Essa é uma continuação da Parte 1 lançada em 2021 que tinha estreia marcada para novembro de 2023, mas que foi parar em fevereiro de 2024 por causa da greve dos roteiristas em Hollywood. Como o elenco estava proibido de fazer divulgação dos filmes durante a greve, foi necessário esperar o acordo, já que Duna 2 clama por uma intensa divulgação. Trata-se de um blockbuster de orçamento altíssimo, um filme extremamente caro.
Dennis Villeneuve, o diretor de Duna, declarou essa semana que os filmes estão sendo corrompidos pelas obras para a TV. Ele afirma isso no sentido do grande foco que as linhas de diálogo ganham nessas obras, em detrimento de uma construção visual de narrativa. Na visão do canadense, você se lembra de um filme através da potência do som e da imagem e não de uma frase escrita em um diálogo.
Acho que ele tem certa razão no que toca à falta de um desenvolvimento mais complexo de linguagem visual, que é o cerne da sétima arte. Entretanto, vejo essa fala com certa arrogância, na qual Dennis se coloca como um grande mestre do som e da imagem, e também com um alto grau de extremismo. A mensagem dele até foi positiva, mas ele acabou se expressando de uma maneira radical demais. É claro que podemos lembrar de um filme pelas palavras escritas em um roteiro que convida à reflexão. Um exemplo recente é o excepcional Anatomia de uma Queda.
Em Duna : Parte Dois, é nítida a vontade que Villeneuve tem de se prender cada vez mais à potência e excelência de construir uma narrativa a partir do som e da imagem, sem diálogos. Em uma adaptação de um universo extenso e complexo, isso se torna um desafio, pois explicações precisam ser dadas a todo momento por meio de diálogos expositivos. Isso acontece mais na Parte 1 e aqui temos um filme, como prometido por ele, no qual a ação, o suspense e a guerra ganham destaque. Ele ficou mais a vontade para explorar esse talento de ser um diretor que conta histórias visualmente e por isso a Parte 2 vai agradar mais do que a Parte 1, embora eu não ache que a diferença seja grande, por gostar da ambientação por meio da apresentação de um instigante universo da Parte 1.
Temos uma sequência em específico que envolve uma etapa que Paul Atreides precisa superar que é uma aula de cinema no cerne de sua potência maior. A fotografia, a trilha sonora espetacular de Hans Zimmer, a atuação de Chalamet, a montagem. Tudo contribui para um momento isolado daqueles de marcar a memória. A sensação é que vamos sentindo junto com Paul e navegando também com ele. São alguns minutos de som e de imagem enchendo a tela com vivacidade, vigor e força. Nesse momento me senti completamente imerso na experiência, foi de arrepiar.
Villeneuve segue dominando a arte da perspectiva do gigantesco. Ele traduz a diferença de tamanhos em construções grandiosas o tempo inteiro. Sentimos o peso do tamanho dos cenários, das naves, de Shai Hulud. Essa é uma marca autoral dele, a concepção do descomunal de uma maneira limpa, com planos amplos e muito abertos. Ele também melhorou a questão pela qual foi criticado na Parte 1: a filmagem dos combates corpo a corpo. Aqui, ele faz a montagem de uma maneira melhor, e os combates estão inseridos em um contexto de maior peso dramático. A suposta morte de um personagem teria uma relevância que poderia mudar os rumos de todo o Imperium, e isso melhora a experiência dos combates, que também são mais bem coreografados.
O elenco de Duna está no tom dramático sintonizado com o que deveria ser. Ninguém destoa nem entrega algo excessivo. São contidos e sombrios quando devem ser e intensos quando o drama pede. A adição de Austin Butler como Feyd-Rautha, o sucessor Harkonnen, foi muito bem trabalhada e acertada. Sua personificação é assustadora e a presença física nas batalhas é muito intensa.
A escolha de usar o preto e branco na cena que introduz esse personagem contribui muito para construir essa pessoa que mete medo. Foi uma escolha além da estética, uma fabricação visual que casa com a alma dos Harkonnen, cruéis, robóticos e desumanos. A cor da pele dos Harkonnen se camufla no preto e branco e dá essa noção de apatia e frieza. São capazes de matar como se uma vida não representasse nada.
Chalamet e Zendaya desenvolvem seus personagens de maneira eficiente. Chalamet entrega um Paul que se transforma ao longo do filme. O Paul do final da Parte 2 parece outra pessoa se comparado com o do início da Parte 1. É uma transformação crível que o ator produz. Zendaya enfim tem tempo para brilhar como Chani, a paixão Fremen de Paul, personificando uma guerreira implacável e com uma visão cética sobre tudo. Esse ceticismo é um dos pontos chave do roteiro que sempre coloca a fé para ser discutida.
Achei curiosa também a transformação de Stilgar, o líder dos Fremen vivido pelo espetacular Javier Bardem. Na Parte 1 temos uma pessoa sisuda, rigorosa e rígida. Aqui, os momentos mais cômicos do filme (e são pouquíssimos) são entregues pela relação de fé que ele tem em confiar que Paul seria o suposto Lisan al Gaib, o predestinado, o Messias que lideraria seu povo para o Paraíso Verde, fonte de uma profecia de milhares de anos. No todo, achei essa variação surpreendente e estranha, mas a verdade é que funcionou, os momentos são engraçados.
Duna tem em seu subtexto a crítica mais potente no que tange o assunto da política se misturando à religião. As Bene Gesserit, Irmandade Milenar, planejam o controle do Imperium pelos bastidores através da manipulação da fé. Lady Jessica, vivida pela ótima Rebecca Ferguson, assume bem aqui esse papel e utiliza uma palavra-chave que se conecta com o mundo real: vulnerabilidade. Os mais vulneráveis são os que mais se apegam a uma crença, os que mais facilmente são convencidos e manipulados para colocar em marcha um plano maior. Essa noção o filme sabe trabalhar.
O longa pode ser refém de sua extrema intensidade. A divisão do roteiro entre 2 partes deixou muita coisa para ser entregue aqui na Parte 2. Talvez essa separação pudesse ter sido mais bem selecionada. O ritmo do filme é ótimo e bem dosado, mas a quantidade de informação e fatos relevantes do roteiro é tamanha, que alguns perdem o impacto. Um deles em especial é algo chocante que, do jeito que foi colocado, não teve o menor peso e deveria ter. Além disso , quase 3 horas de intensidade extrema pode deixar o espectador cansado. Ao fim, o impacto do som não é o mesmo do início, pois somos expostos a ele o tempo todo.
Também acredito que o tempo de batalha final foi curto demais. Temos um grande suspense e uma preparação longa para esse momento, que tem uma dinâmica confusa e acelerada. Aqui, o maior ponto negativo do filme, o jeito que trabalhou a grande batalha final. Não chega aos pés por exemplo de um Senhor dos Anéis de Peter Jackson nesse quesito. Não é algo que atrapalha a experiência como um todo, mas deixa um leve gosto de frustração.
Com tudo isso, Duna : Parte 2 consegue ser uma obra satisfatória. Me entregou momentos de arrepio, de experienciar o Cinema com toda a potência de som e imagem que só essa arte oferece. Quando o filme foca nisso, é quando chega perto de transcender e vende seus melhores momentos, o que corrobora com o arrogante (porém com uma dose de verdade) discurso de Villeneuve. A trilha sonora de Hans Zimmer é um espetáculo a parte e está ainda mais desenvolvida do que na primeira parte. O chão da sala treme o tempo inteiro. Deixo como mensagem final um apelo : se você tiver essa chance, não deixe de ver Duna 2 em uma sala IMAX ou algo do tipo. Foi a experiência cinemática mais marcante que tive em muitos anos , apesar dos problemas do filme em si que abordei. Tenho uma relação de amor e distanciamento com Dennis Villeneuve, mas por ora vou escolher amá-lo. Ótima realização.