santo’s review published on Letterboxd:
Sean Baker entrega mais uma obra profundamente humana com Anora, um conto de fadas urbano que se equilibra entre a crueza da realidade e o brilho fugaz da fantasia. O filme nos apresenta Ani (Mikey Madison, em uma performance arrebatadora), uma stripper tentando sobreviver enquanto navega pelas tensões emocionais e sociais que definem seu mundo. Quando aceita uma proposta de US$15 mil para fingir ser a namorada de Vanya, filho mimado de um oligarca russo, a história desdobra-se em um misto de comédia, melancolia e reflexão.
Baker mantém sua : um olhar profundamente empático para personagens marginalizados, capturando suas dores e pequenas vitórias sem recorrer ao sentimentalismo. O roteiro flui com naturalidade, dando espaço para momentos de humor inesperado e tensões sutis, especialmente enquanto Ani tenta entender o abismo entre a decadência/opulência absurda da elite e sua própria realidade.
O humor de Anora é surpreendente e meticulosamente bem calibrado. As interações entre Ani e Vanya, em particular, criam situações cômicas que nunca parecem forçadas. Há uma sequência específica, envolvendo a busca caótica por Vanya em uma boate, que encapsula o humor nervoso e agridoce do filme. Esses momentos de leveza são fundamentais para equilibrar o peso emocional da narrativa, mas, como sempre no cinema de Baker, a comédia emerge naturalmente das dinâmicas humanas e dos absurdos do cotidiano.
A cinematografia de Drew Daniels é uma extensão natural da abordagem estética de Baker: imersiva, íntima e visceral. Nova York aparece como um lugar de contradições: os excessos das coberturas de luxo contrastam com os becos e clubes noturnos onde a sobrevivência se desenrola em sua forma mais crua. Há algo quase documental na maneira como cada espaço é capturado, mas sempre com uma sensibilidade visual que revela camadas emocionais escondidas.
O coração do filme, entretanto, está na relação entre Ani e Vanya. Mikey Madison e o estreante Anton Sergeev têm uma química curiosa, como se fossem de planetas completamente diferentes e, ainda assim, estivessem presos à mesma órbita. Ani é prática, resiliente, enquanto Vanya é infantil, uma marionete de privilégios que ele mal compreende. Baker, como de costume, evita julgamentos fáceis. Ao invés disso, ele usa essa dicotomia para explorar como a desigualdade econômica e emocional molda até mesmo os vínculos mais improváveis.
Há ecos de Tangerine e The Florida Project na maneira como Baker combina humor e tragédia, mas Anora é menos sobre a vitalidade caótica de seus personagens e mais sobre o peso que eles carregam. O filme reflete um amadurecimento no trabalho do diretor, que aqui parece mais interessado em pausas e silêncios, no que fica subentendido entre as palavras.
O simbolismo de Anora também merece destaque. A ideia de um "conto de fadas moderno" nunca é tratada de forma explícita, mas permeia o filme de forma sutil – nos sonhos desfeitos de Ani, na idealização de Vanya sobre ela, e na própria estrutura narrativa que remete a uma busca por significado em meio ao vazio.
Ao final, Baker não entrega soluções ou lições. Em vez disso, Anora nos confronta com a beleza e a dureza da condição humana, pedindo que olhemos mais de perto, com menos pressa e mais compaixão. É uma obra que consolida Sean Baker como um dos cineastas mais essenciais de sua geração, alguém que continua a encontrar no ordinário um terreno fértil para histórias extraordinárias.